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Cuidar das cidades para onde ninguém mais olha

Na Conferência Nacional de Arquitetura e Urbanismo, promovida há poucos dias em Fortaleza pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU) e várias outras instituições da área, teve apoio unânime o repúdio ao texto da Medida Provisória (MP) n.º 630/2013, em tramitação no Congresso, já aprovado pela Câmara dos Deputados e aguardando votação no Senado. A medida, na prática, cria o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC): transfere às empreiteiras o planejamento e a execução de projetos de engenharia e arquitetura na área pública, em todos os níveis, pois lhes permite projetar, construir e atestar obras. Também inviabiliza, como foi dito ali, a própria atuação dos Tribunais de Contas (como julgar, então, se o preço é justo?). E, na prática, revoga a Lei n.º 8.666/93, que trata da exigência de licitações públicas.

É espantoso, pois “a contratação da obra é feita antes de existir o projeto”, como dizem documentos do CAU. E “sem um projeto completo, elaborado antecipadamente à licitação das obras, a administração não tem parâmetros orçamentários para garantir a qualidade, o preço justo e tampouco controlar o aumento de custos”. Mais: “A falta de transparência prejudica o direito do cidadão de ver seu dinheiro bem empregado; e a qualidade da obra é negligenciada em favor do lucro maior”.

Também é espantoso que, embora a aprovação na Câmara dos Deputados tenha ocorrido no dia 9 de abril, praticamente não estejam ocorrendo – enquanto ainda é tempo, com a tramitação no Senado – discussões em todo o País, diante da constatação de que, na prática, as empreiteiras podem passar a controlar a administração pública. Não é acaso que elas já sejam as maiores doadoras de recursos para campanhas eleitorais e que o Congresso Nacional neste momento pisa em ovos diante de propostas na área.

Nas discussões em Fortaleza – de que participou o autor destas linhas -, afirmou-se que o panorama brasileiro das últimas décadas, quando ocorreu “a inserção brasileira no capitalismo industrial”, acirrou os conflitos nos centros urbanos. E os arquitetos e urbanistas precisam participar da discussão da agenda resultante: o papel do Estado, as desigualdades, os contrastes. Porque, apesar da criação do Estatuto das Cidades, “o conjunto é frágil”. Há mais de 106 mil arquitetos e urbanistas registrados no Brasil, mas com acentuadas diferenças entre os Estados: 20 deles têm número de profissionais abaixo da média nacional.

A área considerada mais grave é a habitacional, em que “vemos a quase institucionalização da informalidade e da produção de edificações, principalmente moradias”, que não se resolve apenas com fiscalização e autos de infração: “O mais adequado e urgente é o esclarecimento dos cidadãos, através da comunicação social, dos serviços prestados pela arquitetura e urbanismo em serviços públicos”, de modo a “garantir o direito fundamental e preventivo da qualidade da habitação e solidez da edificação”, além de medidas de proteção ao ambiente e à saúde dos usuários.

Que pensar, neste caso, sobre cidades como o Rio de Janeiro, com mais de 1,5 milhão de habitantes em áreas precárias, de risco ou sem infraestruturas urbanas? E sobre São Paulo, com centenas de milhares em habitações nas áreas de risco, de preservação permanente e de proteção de mananciais de abastecimento? Segundo o texto, não se trata de “pregar o corporativismo de uma categoria especializada na matéria; o que buscamos é resgatar a capacidade de planejamento do Estado brasileiro, em favor da sociedade”.

Nas discussões da conferência, mostrou-se o quanto se agravam os chamados problemas planetários – consumo de recursos naturais além da capacidade de reposição; a chamada “crise da água”; o avanço progressivo da perda de solos férteis e da desertificação; a perda brutal de alimentos no mundo (1,3 bilhão de toneladas anuais); a perda das florestas e da biodiversidade; a concentração progressiva do consumo (80% dos recursos) e da renda nos países mais ricos; o drama de um quarto da humanidade que vive abaixo da linha da pobreza; e 820 milhões de pessoas que passam fome. Junto com tudo isso, a participação progressiva das zonas urbanas nas emissões de poluentes (mais de 50% hoje e perspectiva de mais de 60% nas próximas décadas).

Fica, então, a perplexidade: num panorama como esse, o poder público renuncia à sua capacidade de planejar a expansão física dos aglomerados urbanos? E como fará, se isso agrava ainda mais o emaranhado de problemas entrelaçados na “mobilidade urbana”? Se já não há planos diretores para as macrorregiões (como a metropolitana de São Paulo), vai-se concordar com o caos prenunciado?

A situação na área de serviços também será grave, com a continuação da perda de 40% da água que passa pelas redes públicas, em vazamentos e furos que as empreiteiras e os políticos não pensam em eliminar, nem mesmo diante da “crise do abastecimento”, porque se trata de obras pequenas e dispersas, debaixo do solo (“ninguém vê”). Na área do saneamento, quase 20 milhões de pessoas continuam sem receber água tratada em sua casa e quase 40% dos domicílios não estão conectados a redes de esgotos. As 270 mil toneladas diárias de lixo domiciliar e comercial no País custam uma fortuna (perto de R$ 10 bilhões por ano) para serem coletadas e destinadas a aterros, que se esgotam.

Por tudo isso, é importante discutir a questão do planejamento urbano e impedir aberrações como a da MP 630/2013. Com mais de 85% da população nas cidades, o planejamento é decisivo. Atualmente, já temos uma indicação de que as pessoas estão perdendo o prazer de viver nos espaços urbanos: basta notar, olhando a paisagem de arranha-céus, que não se vê uma única figura nas janelas e sacadas – quem quer contemplar seus arredores?

Artigo publicado em 02 de maio de 2014 no Jornal O Estado de São Paulo

*Washington Novaes é jornalista e ambientalista

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