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“Existe uma mentalidade de que tudo que é público não é nosso, no entanto tudo que é público é nosso, a gente tem que usar”

Nos dias 31 de outubro a 2 de novembro o ambientalista paulistano Lincoln Paiva, presidente do Instituto Mobilidade Verde, esteve em Goiânia para ministrar a Escola de Parklet. O curso foi realizado no Coletivo Centopeia, em parceria com a Sobreurbana, escritório de Intervenção Urbana e um dos coletivos que participou do Ocupa Goiânia.

Lincoln é especialista em Mobilidade Urbana para países em desenvolvimento pela UNITAR (ONU Training), foi relator do comitê de transportes sustentáveis do Fundo Clima no Ministério de Meio Ambiente e liderou diversas missões técnicas de Mobilidade e Desenvolvimento Urbano em países europeus, asiáticos e americanos.

No dia 1º de novembro, Lincoln participou da montagem da primeira Vaga Viva de Goiânia, que foi construída na Rua 20 no Centro. A iniciativa faz parte dos projetos da Sobreurbana, que tem promovido diversas ações de ocupação urbana em Goiânia. A Vaga Viva foi integrado ao projeto da Residência Resistência, ocupação artística promovida pela Hábil Produção, que convidou artistas para a realização de grafites e outras expressões artísticas nesta casa, uma das primeiras da capital goiana.

Idealizada em São Francisco (EUA) pelo Estúdio Rebar, a Vaga Viva começou através do Park(ing) Day, evento anual, onde artistas, designers e cidadãos transformam áreas de estacionamento em parques públicos temporários.

Na ocasião, o ambientalista concedeu uma entrevista à assessoria de comunicação do CAU/GO, quando falou sobre o que ele denomina de urbanismo caminhável e contou  como trouxe a ideia do parklet de São Francisco. Inicialmente a prefeitura paulistana rejeitou a ideia e Lincoln só foi ter a oportunidade de construir o primeiro parklet em 2013, dentro da X Bienal de Arquitetura de São Paulo. “Quando nós fizemos o parklet foi a primeira vez que se colocou uma discussão pra dizer que a rua é da população, a rua não é do carro, não existe nenhum lugar na Constituição que diz que, se você comprar um carro, você ganha um estacionamento na rua de presente”, critica. Confira a entrevista na íntegra.

 

 

Como foi o início de sua trajetória no ativismo em mobilidade urbana?

Faz dez anos. Naquela época eu morava na Europa, em Lisboa, e trabalhava em um escritório ambiental, trabalhava mais com relatórios ambientais, empresariais, relatórios de engenharia, GHG Protocolo, medindo gases do efeito estufa. Quando voltei para São Paulo, para trabalhar no mesmo escritório aqui no Brasil, eu queria ter a mesma vida que eu tinha lá, poder ir trabalhar a pé, de bicicleta e me recusei a ter um carro. Queria voltar a ter a possibilidade de caminhar pela cidade, porque eu descobri também em Lisboa que caminhar me permitia me conectar melhor com a cidade, saber as coisas que estavam acontecendo, poder parar num café, poder ler um livro, poder viver mais, isso me proporcionava uma qualidade de vida que eu não tinha aqui e que quando voltei queria passar a ter.

Você é paulista?

Sou paulistano, da Vila Madalena.  Essa vida das grandes cidades, focada no automóvel… o automóvel tem uma função dentro da cidade, mas as pessoas acabam usando o carro pra fazer tudo e eu senti que era possível fazer diferente na cidade onde eu vivesse, por isso me recusei a ter carro. E no escritório, eu decidi que tinha que trabalhar também com mobilidade urbana porque não faz sentido essa vida que a gente tem. Então, de 2007 pra cá acabei me especializando nas questões de mobilidade urbana, fundei o Instituto Mobilidade Verde há cinco anos. Para nós, mobilidade urbana não é fim, é meio de desenvolvimento urbano e social, não é apenas um meio de transportar pessoas,  isso um plano de transportes faz. Mobilidade urbana é trabalho, educação, saúde, lazer… e o transporte vem dar apoio a isso. O urbanismo tem muito a ver com mobilidade urbana, mais do que transporte. Mobilidade urbana de qualidade é quando se organiza a cidade em seus diversos setores. Aí o poder público diz: vamos organizar um plano de mobilidade urbana, e quando você vê é um plano de transporte. Plano de transporte não vai transformar a cidade, o que vai transformar a cidade é o plano diretor, são as questões mais ligadas ao urbanismo. E a gente vem trabalhando a mobilidade urbana como meio de desenvolvimento social. Quando a gente trabalha com transporte, a gente pergunta como isto vai desenvolver a cidade, o local, o bairro onde nós estamos, porque se pensarmos apenas numa forma de transportar as pessoas de um ponto para outro, continuaremos com problemas, porque todo sistema de transporte é limitado, uma hora a demanda extrapola a capacidade. Para mim, mobilidade urbana é: quanto menos você precisa de transportes individuais e transportes coletivos, mais mobilidade você vai ter.

Então teríamos que começar por mudanças na política habitacional…

Totalmente, uma mudança na estrutura da cidade, de zoneamento… Essa coisa das pessoas morarem de um lado e trabalharem do outro, não funciona, isso é típico de cidades disfuncionais. Cidades não param de crescer e o transporte é limitado, então temos que ter uma estruturação das cidades, para que as pessoas tenham acesso ao trabalho a uma distância de não mais que 20 minutos a pé ou teremos problemas para o resto da vida. É o que chamamos de urbanismo caminhável, quanto mais é caminhável um bairro, uma cidade, mais desenvolvida de todos os pontos de vista ela é.

Algumas cidades brasileiras estão avançando  mais que outras nesta questão da mobilidade urbana?

Acho que as grandes cidades estão no mesmo patamar, porque precisamos de bons planejamentos que causem mudanças estruturais permanentes. As cidades não fazem planos para os próximos 30 anos, fazem pelo tempo de uma gestão de quatro anos.

Como é que está São Paulo com a prefeitura sob a gestão de Fernando Haddad?

Sem dúvida, é uma gestão que está vendo a cidade com outros olhos, de uma nova forma. A revisão do plano diretor estabeleceu instrumentos novos, estruturando a habitação através dos eixos, com pocket parks, áreas de convivência e ciclovias. As ciclovias reduzem a poluição, a velocidade, melhoram a circulação de crianças e idosos, que não correm tanto risco quanto em vias que têm carros em alta velocidade, as ciclovias são essenciais para fazer uma cidade mais humanizada.

Como começou a sua história com os parklets?

Eu fui para São Francisco em 2010 e, coincidentemente, estava sendo implantado o primeiro parklet lá. Eu não havia ido para isso, fui a convite da prefeitura de São Francisco para ver projetos de mobilidade urbana. Quando eu deparei com um parklet no meio da rua, me chamou muita atenção, porque eu conhecia as vagas vivas, que são uma intervenção urbana temporária, o parklet não, era outra estrutura, com mobiliário urbano, onde as pessoas vinham se sentar. Aí nós voltamos e apresentamos a proposta para a prefeitura de São Paulo e foi como se tivéssemos apresentando uma via de elefante na cidade, coisa de maluco! Tipo assim, “a sua proposta é tomar um espaço de estacionamento?!”. Isso foi um choque. Mas no final de 2012 eu fui contratado pela X Bienal de Arquitetura para tratar da questão de mobilidade dentro da mostra. Então, nós falamos com o curador da X Bienal, Guilherme Wisnik… o tema da bienal naquele ano era Modos de fazer, modos de usar a cidade e a gente achava que o parklet era  um pouco disso, porque é uma forma da população fazer isso, usar a cidade, proporcionar essa discussão, porque o parklet não é uma solução urbanística, ele é um diálogo. Quando nós fizemos o parklet, foi a primeira vez que se colocou uma discussão pra dizer que a rua é da população, a rua não é do carro, não existe nenhum lugar na Constituição que diz que, se você comprar um carro, você ganha um estacionamento na rua de presente. Mas as pessoas acham que a rua é para a situação de automóveis, mas não é, a rua é para situação de automóvel, de bicicleta, de pessoas… Quando a gente coloca um parklet na via, no lugar de dois carros, a gente automaticamente traz essas questões, mesmo para aquelas pessoas que não discutem isso no dia a dia, porque sentar num parklet é um ato político, porque elas começam a perceber “mas olha, isso aqui pode? Mas tá na rua! O que está acontecendo?” E essa é a discussão que a gente quer provocar, esse é o primeiro passo,  à medida que as pessoas começam a perceber que elas podem se apropriar desse espaço, que esse espaço é delas, elas começam a olhar para outras questões, a se apropriar das praças, das calçadas… Hoje existe uma mentalidade de que tudo que é público não é nosso, no entanto tudo que é público é nosso, a gente tem que usar. Nós precisamos vir para as ruas. O parklet é muito interessante porque traz essa discussão, essa discussão de cidade, de melhoria de qualidade de vida, as pessoas se conectam e se conectam com as questões da cidade andando nas ruas, não nas suas casas, não no trabalho, elas precisam vir para as ruas e se conectar com a cidade. Aí elas percebem que as calçadas precisam de melhorias, as ruas… e a melhoria da segurança vai vir a partir do momento em que as pessoas estão na rua.

Guilherme Ortenblad (arquiteto e urbanista que esteve em Goiânia para ministrar a palestra Ocupe a Cidade e é responsável pelos projetos dos parklets em São Paulo) disse que inicialmente vocês temeram que ocorressem atos de vandalismo nos parklets, que as pessoas não entendessem, mas que isso não aconteceu…

No início, a gente não sabia o que iria acontecer. A gente queria colocar essa discussão, mas não tínhamos ideia de qual seria a reação das pessoas. Além de não ter absolutamente nenhum tipo de vandalismo, as pessoas adoraram, porque a cidade de São Paulo, por incrível que pareça, na Avenida Paulista, não tem um banco sequer pra sentar. Como é que a gente quer as pessoas nas ruas, se não tem lugar para sentar, como é que a gente quer áreas de convivência, se a gente só tem áreas de circulação, não tem áreas de permanência? Essa cultura de paz, de amor ao próximo, não temos, a gente não convive. Nós criamos shoppings dentro da cidade, trazendo maior conveniência, porque tem estacionamento, tem mais segurança e tornamos as ruas inseguras. Não sou, sem dúvida nenhuma, contra os shoppings, sou a favor das cidades e acho que a gente pode ter um equilíbrio maior. Aí aparecem esses fenômenos do tipo rolezinhos no shopping, porque onde é que a juventude vai se encontrar? No shopping! Grandes símbolos e tendências estão aí pra mostrar que a gente tem que ocupar as ruas. Jovem não está querendo mais morar na periferia, quer morar no centro, não quer mais comprar carro, a tendência é o jovem morar próximo do trabalho porque ele não quer ter esse custo. A tendência agora é as pessoas comprarem carro mais tarde e usarem menos. Quem quer ficar duas horas parado num carro? Eu sempre digo que a história do status do carro está acabando. À medida que você tem transporte adequado, com qualidade, o status cai por terra. E vai melhorar ainda mais quando as pessoas notarem que elas precisam andar mais, usar meios de transporte alternativo. Uma pesquisa feita na cidade de São Paulo tem alguns dados interessantes: 34% da população anda a pé e 29% usa transporte público, quer dizer mais de 60% da população não usa carro. Isso é uma bomba-relógio. Como é que a gente pode resolver isso? Encurtando as distâncias, para que as pessoas tenham condições de ir trabalhar a pé, de bicicleta. Mas isso não é um processo rápido, precisa planejar a cidade.

Na Europa, existe uma malha metroviária que permite às pessoas deixarem o carro em casa e circular de metrô, mas isso não acontece no Brasil, porque os investimentos são feitos por quilômetros. Temos planejamentos ruins de transporte, sob aspecto de engenharia muito bom, mas sob aspectos práticos de cidades péssimos, que não acompanham as tendências do que tá acontecendo no mundo. Então os governos continuam investindo muito mal os recursos, sem conhecimento adequado… A gente pega Medellin (Colômbia), por exemplo, que estabeleceu projetos muito eficientes de mobilidade urbana, Medellin tem metrô, os teleféricos, o BLT, os ônibus e lá eles fizeram uma coisa muito interessante, que foi sacar que mobilidade urbana é desenvolvimento, então eles estão levando desenvolvimento pra que as pessoas precisem o mínimo possível de transporte. Antes de chegar a linha do metrô, a equipe de desenvolvimento urbano e social vai até lá entender qual a vocação daquele bairro, treina a comunidade para trabalhar no artesanato, no comércio… Transporte tem que ser opção e não necessidade, porque se gera necessidade não se consegue atender a demanda, porque metrô não dá pra fazer uma linha em cima da outra, acabou a capacidade, tem que ser feita outra coisa. São Paulo está assim, tem trechos em que o metrô não atende mais à demanda, chega horários de pico e tanto o trem quanto o metrô se torna uma lata de sardinha. Portanto, é preciso tratar a mobilidade urbana como uma questão social, de desenvolvimento.

E o que você achou do movimento iniciado aqui em Goiânia em prol da mobilidade?

Goiânia, por incrível que pareça, foi a primeira cidade onde a gente falou sobre parklets. Eu dei uma entrevista a uma revista sobre o assunto e o prefeito Paulo Garcia leu, ligou pra gente, pediu pra gente vir aqui, isso em 2012, antes de sermos chamado pela Bienal de Arquitetura. Eu vim, tive uma reunião com o prefeito, com o secretário de transportes, mas simplesmente estacionou por aí. Aí, com a gestão do prefeito Haddad, a coisa andou e acho que São Paulo é a terceira cidade do mundo a ter um decreto que regulamenta os parklets. O decreto é muito bom, porque é um misto do que existe em São Francisco, Chicago e Nova Iorque, nós pegamos o que havia de melhor em cada um deles. O prazo para aprovação no poder público, por exemplo, é de 15 dias. Em São Francisco é muito demorado, pode demorar até um ano. Então, o prefeito nos ajudou a avançar. Inclusive, ele vai pessoalmente inaugurar parklet. E não é só isso, ele tá fazendo uma política de espaços públicos muito interessante. O Jóquei de São Paulo tinha uma dívida milionária de 300 e tantos milhões de reais e o prefeito conseguiu negociar, saldando a dívida em troca da chácara do Jóquei, um lugar gigantesco que criava cavalos de corrida. Imediatamente o prefeito mandou derrubar o muro com uma escavadeira e a comunidade começou a usar e a cuidar daquele espaço. Tomaram um espaço que era privado. Goiânia tem muitas áreas verdes, em São Paulo, quase todas as áreas verdes foram vendidas, estão nas mãos do mercado imobiliário.

Como é o financiamento para a construção dos parklets?

O financiamento é privado. Nós estamos em Goiânia para contar como tem sido a nossa experiência em construir os parklets em parceria com a comunidade. Para a gente não tem sentido fazer um projeto que a manutenção fique a cargo da empresa patrocinadora, tem que ser a comunidade que vai lá colocar água no vaso, limpar, é importante que ela ajude a montar, participe. Estamos com 30 parklets para fazer em São Paulo, mas tem todo o processo de convencimento da sociedade da importância de participar, de fazer junto. Belo Horizonte e Rio de Janeiro estão fazendo seus decretos. Fico muito feliz de poder levar esse conhecimento. Elaboramos o manual de implantação de parklet em São Paulo, montamos a Escola de Parklet, que é ensinada gratuitamente, o que nós esperamos é que as pessoas sejam contagiadas por este trabalho, queremos mostrar que as cidades podem ser mais humanizadas e que o parklet possibilita isso.

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